A trouxa, ela a carregava desde sempre. Marca registrada dos que vagam e andarilham pela terra, ia, como outras, amarrada à ponta de um pau meio carcomido, dependurada, a balançar no ritmo do caminhar. Apesar da sujeira, do cansaço, do desgaste, cuidava dela como quem cuida de algo muito valioso, muito precioso, seu tesouro maior, sua razão de ser.
Era, no entanto, façamos justiça, um estorvo. Pesada, ao sacudir na ponta do pedaço de pau que ia apoiado no ombro, esfolava toda a pele onde encostava e fazia vergar para o lado aquele corpo cansado do fardo. Se fosse carregado pendurado direto das mãos, era desajeitado, ia trombando com as pernas, fazia hematomas, deixava dores. E ocupava sempre, pelo menos, uma das mãos, tornando tudo que precisasse fazer muito mais difícil.
Ela estava convencida, no entanto, de que a trouxa era importante. Não que ela fosse exatamente útil. Não servia, por exemplo, de apoio para a cabeça ao dormir, haja vista que tinha um aspecto duro, uma certa rigidez, que a tornava pouco apropriada para tal uso. Também dali de dentro nada saía que justificasse tanto apreço. De fato, não há alma viva que possa contar que viu algo sair dali de dentro, nem útil nem inútil. Seu conteúdo, para todos os outros viventes, era um mistério.
Foram anos de andanças com a trouxa pendurada. Quando perguntada sobre os porquês, se resumia a dizer “me traz segurança”. Não sendo a única vagante por aí, também não era a única a carregar uma trouxa consigo. Quando cruzava com uma dessas figuras, e suas trouxas, evitava olhar direto nos olhos; tampouco, investigava a trouxa. No máximo, fazia um pequeno aceno de reconhecimento com a cabeça, e seguia sua trilha.
Um dia, andando por um terreno árido de terra batida cheio de pedras, tropeçou. Um buraco, sem aviso, fez com que pisasse em falso, perdesse o apoio e espatifasse no chão. Quem viu a queda diz que foi quase bonita de ver. Para ela, pareceu câmera lenta: o mundo vindo em direção à sua cara, a reação por reflexo de largar tudo e tentar se proteger, o choque, a dor.
Não se machucou gravemente. Esfolou o rosto, ralou as mãos, o peito. Os joelhos sofreram, e um dos tornozelos torceu. Sangrou. Depois da queda estabilizada, ficou ali, jogada. Chorou. Chorou muito. Chorou por dias, semanas, seu mundo eram lágrimas e dor. Sentiu-se como poeira misturada àquela terra vermelha, e em muitos momentos teria gostado de sumir com o vento.
Não se sabe quanto durou esse período de dor e choro. Antes do fim, aos poucos pôs-se a caminhar novamente. Engatinhou um tempo sobre quatro apoios, depois levantou sobre as duas pernas e foi. Com as mãos livres, enquanto andava, massageava onde ainda doía, cuidava dos ferimentos, buscava conhecer novamente seu corpo. Voltou a tropeçar algumas vezes, chorou de novo e de novo, algumas feridas voltaram a abrir. Mas seguiu em frente.
Anos depois, caminhava assobiando uma melodia alegrinha, batendo palmas no ritmo, quando cruzou com um viajante em uma estrada. Sujeito sofrido, perturbado, pesado. Quase o reconheceu. Teve pena. Pensou em oferecer ajuda, mas refreou-se. Aquele, na ponta daquele pau, era o fardo dele. Acenou com a cabeça, olhando-o nos olhos sem receber seu olhar de volta, e seguiu em frente, a pensar no passado, com um sorriso sutil esboçado no rosto.
Deixe um comentário