Eu era adolescente, tinha cerca de 16 anos, e costumava frequentar um shopping center com uns amigos. Às vezes passávamos horas perambulando pelo centro comercial, apenas matando o tempo. Nossa maior diversão era gravar vídeos curtos de pequenas estripolias e transgressões que cometíamos no estacionamento do shopping, no subsolo, para depois compartilhá-las com estranhos na internet. Nada demais, nada grave, nada criminoso ou extremamente imoral. Apenas palhaçadas meio inusitadas, meio bobas, das quais dávamos risadas. Quem é que entende os adolescentes?
Pois aconteceu que certo dia, em um dos andares subterrâneos do prédio — estou quase certa de que era o 3º subsolo — enquanto agachava atrás de um carro estacionado para me esconder de um funcionário da segurança que resolveu andar pelo local, vejo um pequeno caderninho de anotações verde, surrado, desbotado, jogado no chão, todo empoeirado, encostado na parede. Parecia estar ali há muito tempo. Embora não fosse do meu feitio, fui atraída a ele instantaneamente e, sem pensar, guardei o pequeno objeto que não me pertencia em meu bolso, levando-o mais tarde para casa.
Em minha cama, longe de olhares curiosos, folheei minha nova posse. Investiguei a capa e a primeira página, mas não havia nenhum tipo de identificação ou informação de contato. Segui folheando. As próximas páginas estavam anotadas à mão, numa caligrafia delicada, porém apressada, e continham reflexões sobre os mais diversos assuntos. Estava claro que já havia algum tempo que a antiga dona do caderno o usava para despejar pensamentos muito íntimos e pessoais que, supus, ela não expunha a mais ninguém.
Entrar em contato com aquele material foi um choque. Nem as pessoas mais próximas a mim expunham as entranhas de sua subjetividade, suas angústias, seus medos de maneira tão honesta como encontrei naquelas linhas. Viciei em meu novo livro. A leitura daquela preciosidade me colocou em contato com alguém que eu não podia imaginar que existia, mas que sem dúvida, eu gostava, eu invejava, alguém que me inspirava a ser diferente — ou melhor, a simplesmente ser.
O caderno estava preenchido até cerca de 2 terços das páginas. Comecei, então, a exercitar o hábito de escrever nas páginas que estavam em branco. De início, o fiz timidamente, passando semanas, meses, sem escrever nada. Contudo, conforme o tempo passava, sentia maior necessidade de me abrir àquela experiência, de me mostrar verdadeiramente a um leitor que eu não sabia quem poderia ser, mas que eu imaginava que me leria com o mesmo entusiasmo que eu li as intimidades de minha nova amiga imaginária. Fui capaz, pouco a pouco, de me abrir de maneira nova e completa, expondo — no fundo, a mim mesma — coisas que antes eu era incapaz de imaginar que habitavam em mim. Com aquele caderno, cresci, mudei, me encontrei, pude me olhar e me reconhecer.
Depois de um ano, cheguei ao fim do caderninho. Comprei outros, o hábito já estava criado. Mas aquele primeiro foi especial, pela maneira como entrou em minha vida e pelas palavras que encontrei ali. Guardei-o por muitos anos, o mantinha sempre comigo, e o relia com frequência. Chorei no dia que ele se foi: descuidada, fui à praia com ele no bolso e, sem pensar, mergulhei fundo no mar. Seus escritos se perderam. Apenas a lembrança daquelas palavras, das dela e das minhas, continuou me habitando.
Pois bem. Adulta, décadas depois, andava pelo mesmo shopping num dia qualquer atrás de um presente. Estava acompanhada de uma amiga muito querida que convoquei para me ajudar na empreitada. Concluída a tarefa, nos dirigimos ao meu carro, parado no 3º subsolo. Ao nos aproximarmos do carro, a alça da bolsa de minha amiga estourou, fazendo com que seu conteúdo se espalhasse pelo chão. Ela saiu apressadamente catando tudo — carteira, batom, chave de casa, papéis diversos —, até que se deu conta que algo faltava. Ela pareceu se desesperar.
Perguntei do que se tratava e ela hesitou em dizer, mas me contou que se tratava de um caderno de anotações, uma espécie de diário, que ela mantinha. Sem surpresas, ela o descreveu: pequeno, capa verde. De início não me liguei. Depois olhei em volta — era o mesmo andar, o mesmo canto de estacionamento. Talvez fosse a mesma hora do dia, ou o mesmo dia do ano? Não sei. Mirei a direção onde supunha ter encontrado meu tesouro: não havia nada ali. Por um instante, fui tomada por uma vertigem, uma tontura, que logo passou. Segui procurando mas, por mais que nos esforçássemos, o caderno havia desaparecido. Olhei pra ela com uma cara que a assustou, pois ela fez uma careta e me interpelou:
— Que cara é essa?
— Você acredita em viagem no tempo?
— Claro que não!
— É… No fundo, eu também não.
Fosse como fosse, convenci-a a desistir de procurar: ela era uma pessoa incrível e quem quer que encontrasse o caderninho, que ela me garantiu que não continha nenhum dado que pudesse identificá-la, seria muito sortuda em poder bisbilhotar seus pensamentos íntimos.
O caderninho
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