Sentei, descalcei os sapatos, tirei as meias. Desabotoei a camisa. Me larguei. Suspirei fundo e despi-me — e por um momento acreditei ser eu mesmo. Era a hora da honestidade. Acendi um cigarro, hábito antigo de que em algum momento acreditei estar livre. Mas nunca estive livre. Não que essas coisas importassem, não mais. A preocupação com a saúde, ou com a aparência, eu já não a tinha mais. Há uma idade na vida em que passamos a nos preocupar com o que importa de verdade, as coisas entram em perspectiva. Paramos de nos importar com pouca coisa. Fumar, ora, por que não? Era bom, dava prazer. Talvez fosse fumaça. Talvez, o próprio fogo. A sinfonia da cidade grande ressoando nas paredes lisas, nuas, brancas, extensas, virgens do alto do sétimo andar era ensurdecedora e, em certa medida, estragava a experiência, que de outra forma seria, com a certeza que só se pode ter quando se sabe das coisas, experiência agradabilíssima, de escutar o som digital que saía das caixas dos alto-falantes pendurados no teto por sei lá que tecnologia sem furos. Entre sirenes, buzinas, algumas vozes abafadas e eventualmente o barulho trágico de aço subitamente amassado, fiz um esforço para me concentrar na complicada harmonia executada por músicos cuja crítica especializada, entre acordos, recomendava a audição dos acordes. Era mais fácil quando eu podia me lembrar da música, a memória preenchia as lacunas que os sons externos abriam. Mas esse não foi o caso. Não que a música me fosse desconhecida, mas havia muito que eu não a escutava, e os detalhes, as nuances, as viradas da percussão, as sétimas, nonas e décimas terceiras pontuais enfiadas no meio de acordes, de outra forma, simples demais, mundanos demais, que se sucediam numa progressão bastante impressionante por não seguir com o padrão estabelecido pela indústria, tudo isso se perdia nos confins de uma memória já há muito deixada de lado. Mas era o preço a se pagar. Também não existe jantar grátis. A memória é limitada e não se pode lembrar de tudo. O que é de pouca importância se perde.
Estava esquecida, por exemplo, a barulheira dos pássaros e outros bichos às quais, num tempo longínquo, fui acostumado e soube reconhecer e descrever. De manhãzinha, era o beija-flor, cantando numa toada monótona mas rítmica, firme, decidida. Não era um canto belo, mas um beija-flor esbanja beleza demais para se importar com isso. Costumava se equilibrar em algum cabo qualquer entrepostes, mas vez ou outra podia ser apreciado, belo, em um galho alto de uma jasmim-manga, antes de voar e ir embora em busca do néctar doce de uma flor colorida, talvez de uma helicônia, talvez de uma goiabeira. Era o único horário, ao nascer do sol, que eu ouvia seu piado sem graça. Seguia-o o flauteado do sabiá-laranjeira, do alto de seu galho na pitangueira cantando sua tristeza que, se eu fosse sincero, admitiria que não parecia tão triste assim. Sem dúvida, esse sim, era muito belo, como uma beleza com que esconde a infelicidade de não se reconhecer feliz. Começava com notas tímidas. Discretas. Eram seguidas por longos intervalos que iam se encurtando. Alternavam-se, som e silêncio. Ligavam-se frases cada vez mais nuançadas, cuja complexidade, se é que se pode tratar assim o barulho de um pássaro, retratava, mas não para ouvidos destreinados, todo o cenário ornitológico da região, na medida em que emprestava, quase intertextualmente, beirando o plágio, pedaços soltos dos colegas de outras espécies, que às vezes faziam as vezes de adversários, competindo por comida ou por atenção, cujo canto se fazia ouvir ao longo do dia, numa espécie de parceria incidental. O coro era pequeno, mas fazia volume. Eu tinha o hábito de acreditar que era na pequeneza que se fazia grandeza. Frase pronta, pensamento barato, que deixei de lado. Aos sabiás, somava-se o acompanhamento das verdes maritacas, ao se empoleirar maduras, nos beirais, tagarelando causos de vidas simples que já não existem mais, para a felicidade do homem moderno, que não tem tempo para essas bobagens. Dividiam seus espaços com pombas, gigantes feiosas, caviar felino, cujos suspiros davam fundo grave, contrabaixo, aos sons matinais. Seguia-se ao longo do dia o bem-te-vi com seus apitos longos e seus chamados onomatopeicos, de cuja beleza, leve e macia, raio de sol, se fazia sentir a presença que evidenciava a falta de um rio ou bebedouro para banhar seu louro, naquela em que foi a moradia da felicidade e do medo, a respeito da qual as lembranças não se apegam muito. Não podem se apegar, de qualquer forma. Não é a qualquer memória que cabe o privilégio da lembrança. Irritavam o cachorro, na hora do almoço e ao longo da tarde, os piados altos e estridentes das pequenas corruíras, musculosas trogloditas, pulando felizes, talvez esfomeadas, entre as folhas que mais tarde cairiam no assoalho da garagem, forrando a passagem das formigas e caracóis. Seus apelos se faziam ouvir de forma surpreendente, como costuma ser com aquilo a que se costuma ignorar por tempo demasiado, para além do que deveria ter sido. Vez ou outra, nos dias em que a sorte — ou o calor — pareciam estar em excesso, tinha-se a calmaria arrebentada pelo grasnado rouco e pouco amigável de um tucano toco, do alto do bambuzal ou entre as folhas do coqueirinho, ao lado da janela do quarto, de onde se via o inocente meliante roubar seu almoço, ou talvez fosse apenas um lanchinho, antes de partir com seu bico comprido em direção a sabe lá qual morada. Eu acreditava que fossem criaturas pacíficas e os considerava altivos e tímidos, até quando os flagrei sendo perseguidos sonoramente por, veja só, bem-te-vis, cujos próprios ninhos tentavam defender dos bicudos invasores, bicando-lhes o corpo em um voo rápido e ágil, até longe do leito de seus vir-a-ser rebentos, cujas melodias ainda estavam por ser executadas para ouvidos vindouros. Embora silenciosamente, o céu enchia-se de movimento no crepúsculo do anoitecer, quando as andorinhas, bandos delas mesmo quando não fosse verão, riscavam o firmamento num balé cuja complexidade só era superada pela voracidade com que se motivavam a caçar seu jantar voador, artrópode, nutritivo. Ao mesmo tempo, confundiam-se com os morcegos, criaturas inofensivas cuja maior capacidade era a de despertar meu pavor e aflição de estar em sua companhia. Logo, seu voo era alçado às alturas e tudo que se podia saber de sua presença eram os silvos agudos, penetrantes, escuros, às vezes curtos e distantes, às vezes perto demais, arrepiantes, que ficavam nas sombras da memória. No breu da noite, vez ou outra havia o lamento longo e deprimente do urutau, cuja presença era sempre bem-vinda, de cima de um poste ou árvore, camuflado na escuridão e na tristeza, projeção esquizo-paranoide. Fazia par, vez ou outra — dueto da melancolia cujos concertos eram concorridos, visto que raros — com o chamado baixo e constante das corujas cujos olhos brilhavam, tal qual os dos gatos, ao faixo de luz da lanterna na copa das palmeiras de onde elas lançavam seu penetrante muchocho, antes de abrir suas asas surpreendentemente grandes, elegantes, e alçarem um voo que causava inveja, a despeito de seu destino próximo, provavelmente a árvore do terreno ao lado, pela possibilidade, embora nunca aproveitada, de que o voo conduzisse a algo novo, algo a respeito do qual ela, ou eu, jamais saberemos de que se trata. Na madrugada, os sons eram sempre indistintos, assustadores, passos, caçadas, visitas inoportunas, ratos, saruês, baratas, bandidos, felinos, quem poderia saber?, lembrança constante de que a solidão é, apesar dos pesares, um alívio ilusório. Ao se aproximar a alvorada, galos nunca vistos, despertadores domésticos e mal regulados ao contemporâneo mítico, cantavam seu cocoró forte, a despeito da escuridão que nunca cedia. O primeiro a responder seus chamados era o beija-flor.
Ao final da gravação, linda, sublime, desliguei o aparato digital. As janelas fechadas de alguma forma faziam com que a sinfonia urbana se tornasse um som que se diz branco, de fundo, que embala sonos esquisitos cuja motivação é a de nunca acordar, porque a vigília era sempre sonolenta, credora do sono mal aproveitado. Me vi perdido. Deitei-me para dormir. Antes, no entanto, programei uma notificação no celular para o dia seguinte, com o aviso de que o aluguel venceria então. Era importante não esquecer.
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