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  • Teatro

    Teatro

    Um apartamento de classe média baixa. A mulher se vira na cama, insone. Um alarme toca. Ela, aparentando ter entre 35 e 40 anos, levanta apressada. Vai à cozinha, prepara o café, esquenta umas torradas, tira a manteiga da geladeira. Prepara a mesa. Volta para o quarto e chama de maneira cuidadosa o homem que dorme profundamente. Ele, aparentando ter entre 40 e 45 anos, acorda com dificuldade, levanta sonolento, usa o banheiro e senta-se à mesa posta para tomar café. Ela senta-se junto com ele, e em silêncio, fazem o desjejum.

    Quando terminam, ele levanta-se e faz menção de tirar alguma coisa da mesa. Ela o impede, sem muito esforço. Ele volta ao quarto para se vestir e sair para o trabalho. Ela sozinha troca a louça suja por outras limpas. O homem não encontra sua camisa até que a mulher vem e aponta para onde ela está. Depois, ela se dirige ao quarto da criança, pondo-se a chamá-la. Esta, aparentando algo em torno de 10 a 12 anos de idade, levanta da cama resmungando.

    — Tira essa meia, se seu pai ver ele vai reclamar.

    A criança obedece, e depois se arrasta até a mesa, o olhar vidrado no celular.

    O homem volta à sala pronto para sair. Deseja bom dia para a criança e logo lhe diz:

    — Seu cabelo tá muito comprido, menino, tá na hora de cortar.

    A criança finge que não escuta, que não se importa, e segue engolindo um pedaço de pão sem vontade. A mulher deseja a ele bom trabalho, ambos se beijam mecanicamente, e ele sai apressado. Ela pede à criança que não se demore, ou ambos vão se atrasar para chegar à escola.


    O mesmo apartamento, horas mais tarde. A TV está ligada, a mulher recolhe os pratos e panelas do almoço de cima da mesa. O homem está sentado no sofá, atenção dividida entre a TV e o celular. A criança está estirada de maneira preguiçosa sobre uma poltrona próxima ao homem, e dedica toda sua atenção ao seu celular.

    Enquanto faz seu serviço doméstico, a mulher comenta em voz alta sobre um de seus alunos cujo pai foi preso por furto. O homem, sem desviar a atenção das telas, faz um comentário sobre como hoje ninguém quer trabalhar, e todos querem tudo do jeito fácil. A mulher ouve calada.

    A TV exibe a notícia da prisão domiciliar de um ex-presidente. O homem logo diz:

    — Finalmente! — e por um breve momento parece se alegrar.

    A mulher, entre idas e vindas da cozinha para a sala, comenta:

    — Graças a Deus a justiça está sendo feita — ao que ele ainda complementa — Agora as coisas vão melhorar.

    Depois dessa breve interação, seguem cada um em sua mesma atividade, em silêncio.

    Passados uns minutos, o homem levanta-se do sofá e diz à criança “vamos, moleque, vai se trocar que vou te deixar no futebol antes de ir pro trabalho”. A criança suspira, põe de lado o celular e vai para seu quarto.


    O mesmo apartamento, à noite no mesmo dia. A TV da sala está ligada e está no ar o telejornal da noite. É exibida uma reportagem sobre migrações causadas pela crise climática, mas não há ninguém prestando atenção. A porta do quarto da criança está fechada, e ouve-se na sala o som de música alta abafada vinda de lá. O homem e a mulher estão sentados à mesa, há pratos e talheres sujos de uso, e eles conversam.

    — Ele brigou no futebol hoje — diz ela, preocupada.

    — Brigou por quê? — diz ele, em tom desinteressado.

    — Um coleguinha chamou ele de “viado”. Ele revidou com um soco, e os dois começaram a se bater. O professor teve que intervir.

    — Ele fez bem! — diz, sorrindo — Não pode levar desaforo pra casa!

    A TV muda de reportagem, e agora fala sobre a imposição de tarifas comerciais abusivas por parte dos EUA sobre produtos brasileiros. A mulher lança um olhar de desaprovação para o homem, levanta-se em silêncio e começa a recolher os itens sujos da mesa. Ele diz a ela, enquanto tira o celular do bolso para verificá-lo

    — Se você continuar tratando ele com essa moleza, ele vai virar “viado” mesmo. A gente já falou sobre isso.

    Ela fica em silêncio e segue na arrumação. Ele levanta-se após uns instantes e some para seu quarto. Ela termina a arrumação, e vai atrás dele. A TV segue ligada, agora exibindo uma deputada travesti, negra, que discursa no parlamento:

    — …mais uma situação de violência, mas não vão nos calar! Não vão nos invisibilizar! Não toleraremos esse tipo de afronta à nossa comunidade e estamos… — a mulher volta e desliga a televisão.

    É hora de ir dormir.

  • O caderninho

    O caderninho

    Eu era adolescente, tinha cerca de 16 anos, e costumava frequentar um shopping center com uns amigos. Às vezes passávamos horas perambulando pelo centro comercial, apenas matando o tempo. Nossa maior diversão era gravar vídeos curtos de pequenas estripolias e transgressões que cometíamos no estacionamento do shopping, no subsolo, para depois compartilhá-las com estranhos na internet. Nada demais, nada grave, nada criminoso ou extremamente imoral. Apenas palhaçadas meio inusitadas, meio bobas, das quais dávamos risadas. Quem é que entende os adolescentes?
    Pois aconteceu que certo dia, em um dos andares subterrâneos do prédio — estou quase certa de que era o 3º subsolo — enquanto agachava atrás de um carro estacionado para me esconder de um funcionário da segurança que resolveu andar pelo local, vejo um pequeno caderninho de anotações verde, surrado, desbotado, jogado no chão, todo empoeirado, encostado na parede. Parecia estar ali há muito tempo. Embora não fosse do meu feitio, fui atraída a ele instantaneamente e, sem pensar, guardei o pequeno objeto que não me pertencia em meu bolso, levando-o mais tarde para casa.
    Em minha cama, longe de olhares curiosos, folheei minha nova posse. Investiguei a capa e a primeira página, mas não havia nenhum tipo de identificação ou informação de contato. Segui folheando. As próximas páginas estavam anotadas à mão, numa caligrafia delicada, porém apressada, e continham reflexões sobre os mais diversos assuntos. Estava claro que já havia algum tempo que a antiga dona do caderno o usava para despejar pensamentos muito íntimos e pessoais que, supus, ela não expunha a mais ninguém.
    Entrar em contato com aquele material foi um choque. Nem as pessoas mais próximas a mim expunham as entranhas de sua subjetividade, suas angústias, seus medos de maneira tão honesta como encontrei naquelas linhas. Viciei em meu novo livro. A leitura daquela preciosidade me colocou em contato com alguém que eu não podia imaginar que existia, mas que sem dúvida, eu gostava, eu invejava, alguém que me inspirava a ser diferente — ou melhor, a simplesmente ser.
    O caderno estava preenchido até cerca de 2 terços das páginas. Comecei, então, a exercitar o hábito de escrever nas páginas que estavam em branco. De início, o fiz timidamente, passando semanas, meses, sem escrever nada. Contudo, conforme o tempo passava, sentia maior necessidade de me abrir àquela experiência, de me mostrar verdadeiramente a um leitor que eu não sabia quem poderia ser, mas que eu imaginava que me leria com o mesmo entusiasmo que eu li as intimidades de minha nova amiga imaginária. Fui capaz, pouco a pouco, de me abrir de maneira nova e completa, expondo — no fundo, a mim mesma — coisas que antes eu era incapaz de imaginar que habitavam em mim. Com aquele caderno, cresci, mudei, me encontrei, pude me olhar e me reconhecer.
    Depois de um ano, cheguei ao fim do caderninho. Comprei outros, o hábito já estava criado. Mas aquele primeiro foi especial, pela maneira como entrou em minha vida e pelas palavras que encontrei ali. Guardei-o por muitos anos, o mantinha sempre comigo, e o relia com frequência. Chorei no dia que ele se foi: descuidada, fui à praia com ele no bolso e, sem pensar, mergulhei fundo no mar. Seus escritos se perderam. Apenas a lembrança daquelas palavras, das dela e das minhas, continuou me habitando.
    Pois bem. Adulta, décadas depois, andava pelo mesmo shopping num dia qualquer atrás de um presente. Estava acompanhada de uma amiga muito querida que convoquei para me ajudar na empreitada. Concluída a tarefa, nos dirigimos ao meu carro, parado no 3º subsolo. Ao nos aproximarmos do carro, a alça da bolsa de minha amiga estourou, fazendo com que seu conteúdo se espalhasse pelo chão. Ela saiu apressadamente catando tudo — carteira, batom, chave de casa, papéis diversos —, até que se deu conta que algo faltava. Ela pareceu se desesperar.
    Perguntei do que se tratava e ela hesitou em dizer, mas me contou que se tratava de um caderno de anotações, uma espécie de diário, que ela mantinha. Sem surpresas, ela o descreveu: pequeno, capa verde. De início não me liguei. Depois olhei em volta — era o mesmo andar, o mesmo canto de estacionamento. Talvez fosse a mesma hora do dia, ou o mesmo dia do ano? Não sei. Mirei a direção onde supunha ter encontrado meu tesouro: não havia nada ali. Por um instante, fui tomada por uma vertigem, uma tontura, que logo passou. Segui procurando mas, por mais que nos esforçássemos, o caderno havia desaparecido. Olhei pra ela com uma cara que a assustou, pois ela fez uma careta e me interpelou:
    — Que cara é essa?
    — Você acredita em viagem no tempo?
    — Claro que não!
    — É… No fundo, eu também não.
    Fosse como fosse, convenci-a a desistir de procurar: ela era uma pessoa incrível e quem quer que encontrasse o caderninho, que ela me garantiu que não continha nenhum dado que pudesse identificá-la, seria muito sortuda em poder bisbilhotar seus pensamentos íntimos.

  • Lembranças esquecidas

    Lembranças esquecidas

    Sentei, descalcei os sapatos, tirei as meias. Desabotoei a camisa. Me larguei. Suspirei fundo e despi-me — e por um momento acreditei ser eu mesmo. Era a hora da honestidade. Acendi um cigarro, hábito antigo de que em algum momento acreditei estar livre. Mas nunca estive livre. Não que essas coisas importassem, não mais. A preocupação com a saúde, ou com a aparência, eu já não a tinha mais. Há uma idade na vida em que passamos a nos preocupar com o que importa de verdade, as coisas entram em perspectiva. Paramos de nos importar com pouca coisa. Fumar, ora, por que não? Era bom, dava prazer. Talvez fosse fumaça. Talvez, o próprio fogo. A sinfonia da cidade grande ressoando nas paredes lisas, nuas, brancas, extensas, virgens do alto do sétimo andar era ensurdecedora e, em certa medida, estragava a experiência, que de outra forma seria, com a certeza que só se pode ter quando se sabe das coisas, experiência agradabilíssima, de escutar o som digital que saía das caixas dos alto-falantes pendurados no teto por sei lá que tecnologia sem furos. Entre sirenes, buzinas, algumas vozes abafadas e eventualmente o barulho trágico de aço subitamente amassado, fiz um esforço para me concentrar na complicada harmonia executada por músicos cuja crítica especializada, entre acordos, recomendava a audição dos acordes. Era mais fácil quando eu podia me lembrar da música, a memória preenchia as lacunas que os sons externos abriam. Mas esse não foi o caso. Não que a música me fosse desconhecida, mas havia muito que eu não a escutava, e os detalhes, as nuances, as viradas da percussão, as sétimas, nonas e décimas terceiras pontuais enfiadas no meio de acordes, de outra forma, simples demais, mundanos demais, que se sucediam numa progressão bastante impressionante por não seguir com o padrão estabelecido pela indústria, tudo isso se perdia nos confins de uma memória já há muito deixada de lado. Mas era o preço a se pagar. Também não existe jantar grátis. A memória é limitada e não se pode lembrar de tudo. O que é de pouca importância se perde.

    Estava esquecida, por exemplo, a barulheira dos pássaros e outros bichos às quais, num tempo longínquo, fui acostumado e soube reconhecer e descrever. De manhãzinha, era o beija-flor, cantando numa toada monótona mas rítmica, firme, decidida. Não era um canto belo, mas um beija-flor esbanja beleza demais para se importar com isso. Costumava se equilibrar em algum cabo qualquer entrepostes, mas vez ou outra podia ser apreciado, belo, em um galho alto de uma jasmim-manga, antes de voar e ir embora em busca do néctar doce de uma flor colorida, talvez de uma helicônia, talvez de uma goiabeira. Era o único horário, ao nascer do sol, que eu ouvia seu piado sem graça. Seguia-o o flauteado do sabiá-laranjeira, do alto de seu galho na pitangueira cantando sua tristeza que, se eu fosse sincero, admitiria que não parecia tão triste assim. Sem dúvida, esse sim, era muito belo, como uma beleza com que esconde a infelicidade de não se reconhecer feliz. Começava com notas tímidas. Discretas. Eram seguidas por longos intervalos que iam se encurtando. Alternavam-se, som e silêncio. Ligavam-se frases cada vez mais nuançadas, cuja complexidade, se é que se pode tratar assim o barulho de um pássaro, retratava, mas não para ouvidos destreinados, todo o cenário ornitológico da região, na medida em que emprestava, quase intertextualmente, beirando o plágio, pedaços soltos dos colegas de outras espécies, que às vezes faziam as vezes de adversários, competindo por comida ou por atenção, cujo canto se fazia ouvir ao longo do dia, numa espécie de parceria incidental. O coro era pequeno, mas fazia volume. Eu tinha o hábito de acreditar que era na pequeneza que se fazia grandeza. Frase pronta, pensamento barato, que deixei de lado. Aos sabiás, somava-se o acompanhamento das verdes maritacas, ao se empoleirar maduras, nos beirais, tagarelando causos de vidas simples que já não existem mais, para a felicidade do homem moderno, que não tem tempo para essas bobagens. Dividiam seus espaços com pombas, gigantes feiosas, caviar felino, cujos suspiros davam fundo grave, contrabaixo, aos sons matinais. Seguia-se ao longo do dia o bem-te-vi com seus apitos longos e seus chamados onomatopeicos, de cuja beleza, leve e macia, raio de sol, se fazia sentir a presença que evidenciava a falta de um rio ou bebedouro para banhar seu louro, naquela em que foi a moradia da felicidade e do medo, a respeito da qual as lembranças não se apegam muito. Não podem se apegar, de qualquer forma. Não é a qualquer memória que cabe o privilégio da lembrança. Irritavam o cachorro, na hora do almoço e ao longo da tarde, os piados altos e estridentes das pequenas corruíras, musculosas trogloditas, pulando felizes, talvez esfomeadas, entre as folhas que mais tarde cairiam no assoalho da garagem, forrando a passagem das formigas e caracóis. Seus apelos se faziam ouvir de forma surpreendente, como costuma ser com aquilo a que se costuma ignorar por tempo demasiado, para além do que deveria ter sido. Vez ou outra, nos dias em que a sorte — ou o calor — pareciam estar em excesso, tinha-se a calmaria arrebentada pelo grasnado rouco e pouco amigável de um tucano toco, do alto do bambuzal ou entre as folhas do coqueirinho, ao lado da janela do quarto, de onde se via o inocente meliante roubar seu almoço, ou talvez fosse apenas um lanchinho, antes de partir com seu bico comprido em direção a sabe lá qual morada. Eu acreditava que fossem criaturas pacíficas e os considerava altivos e tímidos, até quando os flagrei sendo perseguidos sonoramente por, veja só, bem-te-vis, cujos próprios ninhos tentavam defender dos bicudos invasores, bicando-lhes o corpo em um voo rápido e ágil, até longe do leito de seus vir-a-ser rebentos, cujas melodias ainda estavam por ser executadas para ouvidos vindouros. Embora silenciosamente, o céu enchia-se de movimento no crepúsculo do anoitecer, quando as andorinhas, bandos delas mesmo quando não fosse verão, riscavam o firmamento num balé cuja complexidade só era superada pela voracidade com que se motivavam a caçar seu jantar voador, artrópode, nutritivo. Ao mesmo tempo, confundiam-se com os morcegos, criaturas inofensivas cuja maior capacidade era a de despertar meu pavor e aflição de estar em sua companhia. Logo, seu voo era alçado às alturas e tudo que se podia saber de sua presença eram os silvos agudos, penetrantes, escuros, às vezes curtos e distantes, às vezes perto demais, arrepiantes, que ficavam nas sombras da memória. No breu da noite, vez ou outra havia o lamento longo e deprimente do urutau, cuja presença era sempre bem-vinda, de cima de um poste ou árvore, camuflado na escuridão e na tristeza, projeção esquizo-paranoide. Fazia par, vez ou outra — dueto da melancolia cujos concertos eram concorridos, visto que raros — com o chamado baixo e constante das corujas cujos olhos brilhavam, tal qual os dos gatos, ao faixo de luz da lanterna na copa das palmeiras de onde elas lançavam seu penetrante muchocho, antes de abrir suas asas surpreendentemente grandes, elegantes, e alçarem um voo que causava inveja, a despeito de seu destino próximo, provavelmente a árvore do terreno ao lado, pela possibilidade, embora nunca aproveitada, de que o voo conduzisse a algo novo, algo a respeito do qual ela, ou eu, jamais saberemos de que se trata. Na madrugada, os sons eram sempre indistintos, assustadores, passos, caçadas, visitas inoportunas, ratos, saruês, baratas, bandidos, felinos, quem poderia saber?, lembrança constante de que a solidão é, apesar dos pesares, um alívio ilusório. Ao se aproximar a alvorada, galos nunca vistos, despertadores domésticos e mal regulados ao contemporâneo mítico, cantavam seu cocoró forte, a despeito da escuridão que nunca cedia. O primeiro a responder seus chamados era o beija-flor.

    Ao final da gravação, linda, sublime, desliguei o aparato digital. As janelas fechadas de alguma forma faziam com que a sinfonia urbana se tornasse um som que se diz branco, de fundo, que embala sonos esquisitos cuja motivação é a de nunca acordar, porque a vigília era sempre sonolenta, credora do sono mal aproveitado. Me vi perdido. Deitei-me para dormir. Antes, no entanto, programei uma notificação no celular para o dia seguinte, com o aviso de que o aluguel venceria então. Era importante não esquecer.

  • A trouxa

    A trouxa

    A trouxa, ela a carregava desde sempre. Marca registrada dos que vagam e andarilham pela terra, ia, como outras, amarrada à ponta de um pau meio carcomido, dependurada, a balançar no ritmo do caminhar. Apesar da sujeira, do cansaço, do desgaste, cuidava dela como quem cuida de algo muito valioso, muito precioso, seu tesouro maior, sua razão de ser.

    Era, no entanto, façamos justiça, um estorvo. Pesada, ao sacudir na ponta do pedaço de pau que ia apoiado no ombro, esfolava toda a pele onde encostava e fazia vergar para o lado aquele corpo cansado do fardo. Se fosse carregado pendurado direto das mãos, era desajeitado, ia trombando com as pernas, fazia hematomas, deixava dores. E ocupava sempre, pelo menos, uma das mãos, tornando tudo que precisasse fazer muito mais difícil.

    Ela estava convencida, no entanto, de que a trouxa era importante. Não que ela fosse exatamente útil. Não servia, por exemplo, de apoio para a cabeça ao dormir, haja vista que tinha um aspecto duro, uma certa rigidez, que a tornava pouco apropriada para tal uso. Também dali de dentro nada saía que justificasse tanto apreço. De fato, não há alma viva que possa contar que viu algo sair dali de dentro, nem útil nem inútil. Seu conteúdo, para todos os outros viventes, era um mistério.

    Foram anos de andanças com a trouxa pendurada. Quando perguntada sobre os porquês, se resumia a dizer “me traz segurança”. Não sendo a única vagante por aí, também não era a única a carregar uma trouxa consigo. Quando cruzava com uma dessas figuras, e suas trouxas, evitava olhar direto nos olhos; tampouco, investigava a trouxa. No máximo, fazia um pequeno aceno de reconhecimento com a cabeça, e seguia sua trilha.

    Um dia, andando por um terreno árido de terra batida cheio de pedras, tropeçou. Um buraco, sem aviso, fez com que pisasse em falso, perdesse o apoio e espatifasse no chão. Quem viu a queda diz que foi quase bonita de ver. Para ela, pareceu câmera lenta: o mundo vindo em direção à sua cara, a reação por reflexo de largar tudo e tentar se proteger, o choque, a dor.

    Não se machucou gravemente. Esfolou o rosto, ralou as mãos, o peito. Os joelhos sofreram, e um dos tornozelos torceu. Sangrou. Depois da queda estabilizada, ficou ali, jogada. Chorou. Chorou muito. Chorou por dias, semanas, seu mundo eram lágrimas e dor. Sentiu-se como poeira misturada àquela terra vermelha, e em muitos momentos teria gostado de sumir com o vento.

    Não se sabe quanto durou esse período de dor e choro. Antes do fim, aos poucos pôs-se a caminhar novamente. Engatinhou um tempo sobre quatro apoios, depois levantou sobre as duas pernas e foi. Com as mãos livres, enquanto andava, massageava onde ainda doía, cuidava dos ferimentos, buscava conhecer novamente seu corpo. Voltou a tropeçar algumas vezes, chorou de novo e de novo, algumas feridas voltaram a abrir. Mas seguiu em frente.

    Anos depois, caminhava assobiando uma melodia alegrinha, batendo palmas no ritmo, quando cruzou com um viajante em uma estrada. Sujeito sofrido, perturbado, pesado. Quase o reconheceu. Teve pena. Pensou em oferecer ajuda, mas refreou-se. Aquele, na ponta daquele pau, era o fardo dele. Acenou com a cabeça, olhando-o nos olhos sem receber seu olhar de volta, e seguiu em frente, a pensar no passado, com um sorriso sutil esboçado no rosto.