Tag: cotidiano

  • Teatro

    Teatro

    Um apartamento de classe média baixa. A mulher se vira na cama, insone. Um alarme toca. Ela, aparentando ter entre 35 e 40 anos, levanta apressada. Vai à cozinha, prepara o café, esquenta umas torradas, tira a manteiga da geladeira. Prepara a mesa. Volta para o quarto e chama de maneira cuidadosa o homem que dorme profundamente. Ele, aparentando ter entre 40 e 45 anos, acorda com dificuldade, levanta sonolento, usa o banheiro e senta-se à mesa posta para tomar café. Ela senta-se junto com ele, e em silêncio, fazem o desjejum.

    Quando terminam, ele levanta-se e faz menção de tirar alguma coisa da mesa. Ela o impede, sem muito esforço. Ele volta ao quarto para se vestir e sair para o trabalho. Ela sozinha troca a louça suja por outras limpas. O homem não encontra sua camisa até que a mulher vem e aponta para onde ela está. Depois, ela se dirige ao quarto da criança, pondo-se a chamá-la. Esta, aparentando algo em torno de 10 a 12 anos de idade, levanta da cama resmungando.

    — Tira essa meia, se seu pai ver ele vai reclamar.

    A criança obedece, e depois se arrasta até a mesa, o olhar vidrado no celular.

    O homem volta à sala pronto para sair. Deseja bom dia para a criança e logo lhe diz:

    — Seu cabelo tá muito comprido, menino, tá na hora de cortar.

    A criança finge que não escuta, que não se importa, e segue engolindo um pedaço de pão sem vontade. A mulher deseja a ele bom trabalho, ambos se beijam mecanicamente, e ele sai apressado. Ela pede à criança que não se demore, ou ambos vão se atrasar para chegar à escola.


    O mesmo apartamento, horas mais tarde. A TV está ligada, a mulher recolhe os pratos e panelas do almoço de cima da mesa. O homem está sentado no sofá, atenção dividida entre a TV e o celular. A criança está estirada de maneira preguiçosa sobre uma poltrona próxima ao homem, e dedica toda sua atenção ao seu celular.

    Enquanto faz seu serviço doméstico, a mulher comenta em voz alta sobre um de seus alunos cujo pai foi preso por furto. O homem, sem desviar a atenção das telas, faz um comentário sobre como hoje ninguém quer trabalhar, e todos querem tudo do jeito fácil. A mulher ouve calada.

    A TV exibe a notícia da prisão domiciliar de um ex-presidente. O homem logo diz:

    — Finalmente! — e por um breve momento parece se alegrar.

    A mulher, entre idas e vindas da cozinha para a sala, comenta:

    — Graças a Deus a justiça está sendo feita — ao que ele ainda complementa — Agora as coisas vão melhorar.

    Depois dessa breve interação, seguem cada um em sua mesma atividade, em silêncio.

    Passados uns minutos, o homem levanta-se do sofá e diz à criança “vamos, moleque, vai se trocar que vou te deixar no futebol antes de ir pro trabalho”. A criança suspira, põe de lado o celular e vai para seu quarto.


    O mesmo apartamento, à noite no mesmo dia. A TV da sala está ligada e está no ar o telejornal da noite. É exibida uma reportagem sobre migrações causadas pela crise climática, mas não há ninguém prestando atenção. A porta do quarto da criança está fechada, e ouve-se na sala o som de música alta abafada vinda de lá. O homem e a mulher estão sentados à mesa, há pratos e talheres sujos de uso, e eles conversam.

    — Ele brigou no futebol hoje — diz ela, preocupada.

    — Brigou por quê? — diz ele, em tom desinteressado.

    — Um coleguinha chamou ele de “viado”. Ele revidou com um soco, e os dois começaram a se bater. O professor teve que intervir.

    — Ele fez bem! — diz, sorrindo — Não pode levar desaforo pra casa!

    A TV muda de reportagem, e agora fala sobre a imposição de tarifas comerciais abusivas por parte dos EUA sobre produtos brasileiros. A mulher lança um olhar de desaprovação para o homem, levanta-se em silêncio e começa a recolher os itens sujos da mesa. Ele diz a ela, enquanto tira o celular do bolso para verificá-lo

    — Se você continuar tratando ele com essa moleza, ele vai virar “viado” mesmo. A gente já falou sobre isso.

    Ela fica em silêncio e segue na arrumação. Ele levanta-se após uns instantes e some para seu quarto. Ela termina a arrumação, e vai atrás dele. A TV segue ligada, agora exibindo uma deputada travesti, negra, que discursa no parlamento:

    — …mais uma situação de violência, mas não vão nos calar! Não vão nos invisibilizar! Não toleraremos esse tipo de afronta à nossa comunidade e estamos… — a mulher volta e desliga a televisão.

    É hora de ir dormir.

  • Incoerência

    Incoerência

    Quero ser sempre coerente. É pedir muito?

    Quando vou à análise, pareço achar que sou o personagem de uma ficção. Embora a psicanalista me advirta da importância de permitir que as associações que faço fluam livremente, sem que eu busque controlá-las, quando me sento diante dela pareço achar que o mais importante é mostrar a ela que minha história está amarradinha, sem buracos. Que sou livre de conflitos. Que tudo que faço corresponde ao que os outros esperam de mim. Saio da sessão contrariada quando ela aponta para meus pequenos furos de roteiro.

    Ao ler um livro ou ao assistir a um filme, exijo que a história contada faça sentido. Quero que as personagens sejam construídas pouco a pouco ao longo da narrativa, com seus traços de caráter e personalidade, seus gostos, suas motivações, de maneira que as atitudes que tomarão ao longo da trama sejam percebidas como aceitáveis para aquela pessoa que me foi apresentada. Quero ser capaz de acreditar que ela realmente faria aquilo, que é de se esperar aquela atitude, fala, comportamento.

    Sofro com as evidências de que algo em meu “eu” atual está desalinhado com o que construí sobre mim até aqui. Prefiro pensar que eu fui, sou e serei sempre a mesma. “Por que eu disse isso?”, “por que eu faria tal coisa?”, “como foi que eu vim parar aqui?”. Passo a revirar meu passado, revisito minha infância, revivo minha adolescência, os tempos antigos e os recentes, sempre em busca de algo que justifique o que estou prestes a fazer, ou o que acabei de dizer, ou o que tenho pensado diariamente. Se encontro, logo digo “já estava tudo aí!”. Mas quando não consigo achar, me pego pensando em como esconder esse desencontro.

    De onde vem tanta exigência? Por que não posso abraçar minhas incoerências? Qual é o problema em querer algo que nunca quis antes? O que justifica não me permitir ser alguém que pode me surpreender?

    Preciso sempre fazer sentido?

  • Vitrines

    Vitrines

    Ando pela calçada. As vitrines se apresentam com seus letreiros coloridos e brilhantes, chamativos, encantadores. Cada uma dessas fachadas, uma nova promessa. Meu caminho contém uma série desses dispositivos.

    “Há opções”, me dizem.

    Não devo me demorar a escolher, também me dizem. Mas, ainda há tempo para alguma dúvida. Às vezes, uma dessas fachadas me atrai. Talvez seja a iluminação certa, talvez seja o preço baixo. Não me importo em saber o que é. Entro, olho, ponho a mão, sinto o cheiro. Me interesso um pouco por isso ou aquilo, mas quase nunca levo alguma coisa. Quando levo, perco o interesse logo. No fundo, nada ali é novo, embora tudo seja novidade.

    Sigo atenta às vitrines. Em cada uma, a propaganda de novas possibilidades, o anúncio de novas estações, a chamada para a próxima versão, ou para a melhor solução. Há vitrines abarrotadas, entulhadas, empoeiradas; há outras com visual clean, elegante, discreto. Há umas que convidam todo mundo a entrar; outras deixam claro que o que expõem não é para qualquer uma.

    Me pergunto se sou qualquer uma.

    Mas não há tempo pra isso, as horas estão passando. O sol já vai baixo no horizonte e logo tudo fecha. Tento me lembrar do que eu preciso, o que eu estou buscando. Não tenho certeza do que era, se é que era algo. Talvez eu só estivesse de passagem. Mas agora há uma urgência, é preciso escolher logo. Sigo olhando, atônita, confusa, procurando.

    O quê, mesmo?

    Completamente perdida, as opções todas para nem-sei-o-quê me parecem caras demais, brilhantes demais, promissoras demais. Vendedores agora se avolumam nas portas das vitrines, gritam, me enfiam nas mãos amostras grátis de tudo quanto é coisa que não preciso. Anoitece, e me cercam os olhares de reprovação por ainda não estar decidida. Vejo os letreiros se apagarem, as portas se trancarem, os alarmes se ativarem. É o fim.

    Fico ali parada, com a culpa por não ter escolhido nada.

    E com a estranha sensação de que afinal a mercadoria era eu mesma.

  • Nomes

    Nomes

    Há uns anos atrás, me envolvi com jardinagem. Quem esteve por perto e acompanhou sabe o quanto isso tomou um espaço grande em minha vida. Boa parte do processo de aprender sobre jardins e sobre o cuidado de plantas envolveu aprender o nome das plantas, suas espécies, seus nomes populares, a que família pertenciam do ponto de vista botânico. Ao longo desse processo, percebi algo muito interessante: conforme eu aprendia o nome de algumas plantas, eu passava a vê-las por aí com uma frequência maior. Não é que elas estivessem mais presente nos ambientes do que antes, mas que, a partir do momento que eu passei a diferenciá-las por um nome próprio para cada uma, eu passei a enxergá-las e reconhecê-las com mais frequência.

    É como se, ao nomear algo, eu passasse a distinguir isso do fundo caótico do mundo e da vida. Essa coisa passa a ter contorno, borda. Antes de nomear, tudo num pomar são árvores. Depois, você passa a distinguir uma jaboticabeira de uma pitangueira. Não é difícil perceber que isso se estende para tudo que nos rodeia. No entanto, embora a nomeação seja importante por dar esse aspecto de visibilidade pra coisa, ao possibilitar que a coisa seja manipulável e referenciada em um discurso, nomeações também implicam em consequências pré-determinadas e isso às vezes traz problemas.

    Explico: suponha que você cave um buraco e construa ali um espaço azulejado, bem cuidado, e encha de água. Se você chamar esse espaço de “piscina”, pessoas provavelmente nadarão ali. Contudo, se você disser que aquilo é um reservatório de água, então nadar ali só será uma opção para aqueles que gostam de transgredir regras. Se você ainda disser que o espaço é um “lago”, talvez questionem onde estão os peixes e as plantas.

    O que quero dizer é que nomear as coisas altera como vemos o mundo. Isso é exclusivo do ser humano. Para um pássaro, não importa o nome que você dá para seu espaço cheio de água, ele provavelmente beberá essa água e possivelmente se banhará nela. Cachorros não bebem a água do vaso sanitário? É porque a relação deles com aquilo não está mediada pela linguagem, então a água disponível ali não é diferente da água da vasilha limpa que você oferece a ele. Mas a nossa relação com o mundo está, sempre, mediada pela linguagem e pelos nomes que damos às coisas.

    Eu disse que isso pode trazer problemas. Vamos a eles. Imagine uma menina, como muitas, que é ensinada a entender alguns comportamentos agressivos dos meninos como “carinho” ou “amor”. “Fulaninho puxou a alça do seu sutiã? Ah, é porque ele gosta de você”. Imagine, agora, um funcionário de indústria, trabalhando em escala 6×1, turnos cansativos, sem tempo para família, para amigos, para auto-cuidado, para lazer, que eventualmente deixa de ter interesse pela vida e, ao passar pelo médico, recebe o diagnóstico do seu sofrimento: “depressão”. Imagine, ainda, um garoto que, ao se sensibilizar e chorar ao presenciar uma cena triste, escuta de algum colega ou mesmo de um adulto “seu viado”.

    Percebe onde estão os problemas? As consequências que cada uma dessas nomeações traz? Se nomear traz visibilidade e possibilidade de manejo, também encerra possibilidades de ação e limita o escopo de existência de algo. Pense em diagnósticos psiquiátricos, pense em nomeação de gêneros, pense em explicações para fenômenos atmosféricos extremos, pense em professores apontando “alunos-problemas”, pense nos efeitos de chamar uma região urbana de “cracolândia”. Pense no seu nome e sobrenome. É preciso muita atenção à maneira como as coisas são nomeadas, e que efeitos e consequências elas provocam.

  • Travamento

    Travamento

    A trava voltou. De vez em quando isso acontece: eu emperro e não consigo escrever. Mas com uma ajudinha aqui e outra ali, estou de volta. Não é simples, estou percebendo, escrever com rotina, semanalmente. Aproveitei o carnaval como desculpa para pular uma semana (perdão pelo trocadilho, parece que hoje eles estão fluindo) e quando vi, já estava pulando a segunda. Mas aqui estou, evitando isso. 

    Voltar envolveu um trabalho de entender porque travei. Vocês também travam às vezes? Não necessariamente para escrever, mas para fazer o que precisa ser feito na vida, no dia-a-dia. Sempre que me vejo nessa situação, a saída passa por olhar para dentro e, nesse trabalho, acabo sabendo algo que ainda não sabia sobre mim. 

    O que acabei de dizer é uma meia-verdade. Não se trata exatamente de coisas que nós não saibamos. Mas há muito que sabemos e ignoramos. As razões para isso são variadas. Entrar em contato com algumas coisas pode ser doloroso, e pode parecer melhor ignorar, fingir não ver. Ledo engano: isso que deixamos para escanteio sempre dá um jeito de produzir seus efeitos, e um deles pode ser justamente o tal travamento.

    A psicanálise fascina por mostrar isso: o fato de que sabemos tão pouco sobre nós mesmas. E aquilo que sabemos, muitas vezes escolhemos ignorar. Mas não dá pra fugir do que ignoramos, e cedo ou tarde, trombamos com isso. Você pode até tentar se virar sozinha para lidar com esse susto, e muitas vezes dá certo. Mas quando não der, uma ajudinha pode vir a calhar. Me procure!

  • Travessia

    Travessia

    Como uma criança que está prestes a fazer uma travessura, olho em volta verificando se nada me impedirá. Parto, então, em direção ao desconhecido. O destino não está claro. Talvez não haja um destino. Mas não importa, a única certeza é a transgressão, e o que realmente importa é o caminho.

    Caminho, então, sem saber para onde. Atravesso escuridões, encontro luzes que cegam, enfrento solidões, me perco em multidões. Às vezes caio na besteira de achar que sei onde devo chegar, e tento me transportar para lá. Outras, me lembro do prazer que há no próprio caminhar, e, perdida, me deixo levar.

    Levo comigo tudo: o que me faz avançar e o que me trava. Clarice nos avisou—nunca sabemos o que nos sustenta. Mas a bagagem é pesada, me atrasa, me cansa. Em algum ponto da travessia é preciso abandonar o que não serve mais, o que caducou, o que rasgou, o que furou, o que queimou. O peso diminui, o ritmo aumenta, o avanço se faz sentir. Mas, será avanço ou retrocesso, se não sei para onde ir?

    Continuo perdida. Todavia, sigo no caminho. Caminho se faz ao caminhar. Me associo livremente a essa direção, àquela, àquela outra, como uma aranha tecendo uma teia. Direções que se cruzam. De vez em quando, penso em desistir. Transito entre o desejo de continuar e o medo de nunca mais me encontrar. O traslado às vezes parece sombrio, tenebroso. Às vezes, parece calmo como um jardim no outono. Mas é constantemente solitário.

    Há, é preciso reconhecer, sempre alguém por ali. É preciso que haja, não se faz isso sozinho. Não importa, quase nunca me sinto acompanhada. No fundo, há um nível de solidão que é insuperável. Transponho o momento de crise, deixo o choro para trás, e sigo meu caminho.

    Caminhando, tranço novos saberes, novos dizeres, novas identidades. Mas não me apego a elas. Assim como elas vêm, deixo que vão. Palavras ganham novos sentidos, velhos sentidos ganham novas palavras. Aos poucos, o que era conhecido vai se tornando estranho. E o que era estranho vai se transmutando em parte de mim. O tempo transpassa meu corpo mudado, e às vezes em um corte abrupto, às vezes de forma gentil, ele me lembra que nunca passa. Mas também nunca para.

    A próxima parada se aproxima. Ficarei por ali, finalmente? Ou seguirei, sempre em frente? Não sei. Avisei no início, o destino era incerto, talvez inexistente. Alguns dizem que há um final: eles que passem.

    Eu? Aposto na eternidade do caminhar.

  • Vazio

    Vazio

    De vez em quando, te deparas com um vazio de ideias. Queres escrever e nada sai. Nada. Ficas olhando, a tela em branco no computador, o cursor piscando, esperando, e nada.

    A que resistes? Se eu não te fizesse essa pergunta, poderia trocar de profissão. O que te prende e trancafia tuas palavras, tuas ideias?

    De vez em quando, tens um vazio no peito. Buscas sentir e nada surge. Nada. Prestas atenção: o buraco na alma, a ansiedade, a vontade de chorar, e nada.

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  • Reconhecimento

    Reconhecimento

    Imagina:
    Estar em algum lugar novamente, onde já se esteve muitas vezes, e não ser reconhecida. Olhares de hesitação, descaso, desprezo. Ou seriam de reconhecimento?

    Então, olhar em volta ao andar pela sua rua, pela sua cidade, pela sua escola, pelo seu bairro, pelo seu trabalho, e não reconhecer ninguém. Tudo novo para se conhecer. Nada reconhecível.

    Pesadelo, sonho, delírio, desejo.

    Solidão?

    Reconhecimento parece ser algo que todos querem. Mas não por qualquer motivo. Sim, reconhecimento pelo trabalho bem feito, pela amizade fiel, pela bondade encenada, pela genialidade exibida, pela coragem esbanjada… Mas não, que não me reconheçam se eu estiver sendo um canalha, se eu estiver roubando, se eu estiver envergonhada, se eu estiver me sentindo horrorosa, se meu fazer não for condizente com meu dizer.

    Reconheço: não estou me fazendo entender. Talvez vocês não me reconheçam ao ler essas linhas. Dirão — quem é essa pessoa que não conheço? Mas, mesmo que reconhecessem, isso quer dizer que me conhecem?

    O medo do desconhecido é maior que o medo de não ser reconhecida? Eu já disse, mudanças nem sempre são fáceis: se mudamos, quem nos reconhecerá depois? Não mudamos por medo de perder o reconhecimento do outro?

    Agora,
    Imagina olhar no espelho e não se reconhecer.
    Imagina, o que pode ser ainda pior, se reconhecer:
    Olhar no espelho e se iludir, achando que aquela é você.

  • Visibilidade 🏳️‍⚧️

    Visibilidade 🏳️‍⚧️

    Dia 29 de janeiro é comemorado no Brasil o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data foi instituída em 2004, há mais de 20 anos, e mesmo assim, ainda há muita desinformação sobre as transgeneridades, e muita gente que se exime da responsabilidade de entender sobre o assunto e saber que pessoas trans existem e devem ser respeitadas e incluídas no meio social de forma digna. O Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo (em 2024 foi o 16° ano consecutivo que nosso país “ganhou” essa disputa miserável), e pela maioria dos lugares por onde as pessoas circulam no seus cotidianos, continua sendo raro encontrar uma pessoa trans que se sinta segura o suficiente para se expor enquanto tal (quantas pessoas assumidamente trans circulam pelo seu trabalho? Pela sua academia? Pela padaria que você compra pão? Na loja onde você compra suas roupas?). Falta informação, falta empatia, falta política pública, falta vontade. Falta que as pessoas falem sobre o assunto de forma séria e despida de preconceitos.

    No entanto, apesar de todas as dificuldades e complicações, hoje há mais pessoas que assumem sua transgeneridade do que antes, e isso vem sendo notado e tem gerado uma série de reações nas pessoas, nas empresas, nos políticos. Direitos conquistados a duras penas vêm sendo derrubados por todo o mundo. A perseguição tem aumentado. Por isso, é hora de todos, todas e todes que se entendem como pessoas tolerantes, progressistas, que se identificam com pautas das esquerdas políticas, que se consideram simpatizantes ou apoiadores dos movimentos LGBTQIAPN+, se posicionarem mais ativa e explicitamente com relação ao seu entendimento e conhecimento das experiências e vidas trans, para que seu apoio seja efetivo e possa ajudar a proteger esses direitos, fazendo do mundo um lugar menos inóspito para todas as pessoas.

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  • Mudanças

    Mudanças

    Mudanças fazem parte da vida. Com frequência elas acontecem à nossa revelia, vêm como surpresas, nos pegam despreparadas, e impõem diferenças no nosso jeito de viver, nos nossos costumes, nas pessoas que estamos acostumadas a ver no dia-a-dia etc. São exemplos desse tipo de mudanças o falecimento de uma pessoa de nosso entorno; a demissão inesperada de um emprego; um acidente qualquer; ganhar um prêmio em um concurso ou loteria; a mudança para o apartamento do lado de um vizinho mais chato ou mais legal que o anterior; uma revelação inesperada qualquer de um familiar. Por aí vai. Há pessoas que lidam razoavelmente bem com esse tipo de mudança porque tendem a ser flexíveis e aproveitar de maneira satisfatória o inesperado da vida. Outras pessoas já têm mais dificuldades, e sofrem mais com a sensação de falta de controle e a impotência que essas situações podem provocar, independentemente de se tratar de uma mudança que parece boa ou ruim.

    Mas mudanças também acontecem com intenção, seja porque se imagina que algo pode melhorar, ou porque é preciso deixar algo para trás. Falo aqui de coisas mundanas, cotidianas. Parar de fumar; encerrar um relacionamento; mudar a cor de uma parede do quarto; largar um emprego; passar a tratar alguém de uma maneira diferente; mudar-se de casa; adotar um pet; cortar curto um cabelo que está longo há muito tempo; deixar o sedentarismo; adotar um novo visual de roupas; se cobrar menos; aprender a tocar um instrumento. Como no primeiro caso, promover mudanças propositalmente também pode ser um desafio para alguns, enquanto outros fazem isso com certa facilidade. Varia, novamente, de acordo com características pessoais de cada um, e também com o tipo de mudança que se propõe fazer.

    É certo, no entanto, que todas as pessoas podem se deparar, em algum momento, com coisas que elas gostariam de mudar mas não conseguem. Você sabe do que eu estou falando. Conforme a vida vai seguindo seu curso mais ou menos natural, se estamos atentas, vamos notando certas repetições nas nossas vidas que, às vezes, temos interesse em evitar. Vemos que a vida repete alguns ciclos, alguns “destinos” de maneira tão intensa, que é fácil apelar para a superstição ou para a espiritualidade para explicar essas repetições. Exemplos. Nos percebemos vivendo os mesmos problemas nas relações amorosas que estabelecemos, independente de com quem seja a parceria; ou notamos que as parcerias são sempre com pessoas com determinadas características, improváveis e mesmo pouco desejosas. Nos flagramos cometendo os mesmos erros de antes ao lidar com alguma dificuldade cotidiana. Verificamos que, frente a algumas coisas, paralisamos, mesmo que isso não seja desejável. E mesmo vendo tudo isso acontecer, promover uma mudança nesses casos parece impossível: quando vemos, lá estamos nós, novamente, fazendo as coisas da mesma maneira.

    Há, dentro do universo enorme da psicologia, muitas maneiras de abordar esse fenômeno. A psicanálise me parece muito interessante aqui. Eu entendo, como psicanalista, que nosso agir no mundo se relaciona com nossos quereres e implica em decisões racionais, lógicas, calculadas e planejadas, mas também tem traços elementares e radicais de algo em nós que desconhecemos. A isso, damos o nome de inconsciente. Ou seja, nosso agir no mundo, para além da racionalidade e do poder de cálculo e planejamento que possuímos, é influenciado (e, afirmo, com uma intensidade surpreendente) por processos que ocorrem em nosso psiquismo a respeito dos quais temos pouco ou nenhum conhecimento. 

    Ora, é de se esperar então que essas repetições, mesmo que sofridas e pouco proveitosas, têm relação com processos inconscientes. Há algo no inconsciente que se liga a esse “padrão” repetitivo e que nos impele à repetição. Promover uma mudança seria, nesse caso, uma perda. Mesmo um hábito ruim, um padrão de relacionamentos questionáveis ou a tendência a escolhas “erradas” repetidas vezes podem, no nível do inconsciente, representar algo de prazeroso ou, no mínimo, satisfatório. Seja a ideia (ilusória) de controle da situação, a sensação de familiaridade, o retorno a uma posição conhecida, a realização de uma fantasia identitária sobre si mesmo — as possibilidades são muitas e, em cada caso, é preciso muito trabalho para compreendê-las. Mas mudanças implicam na ideia de perda e nem sempre é fácil agir para perder algo que se supõe ter.

    Já indico, ao dizer que “se supõe ter”, que o caminho que se explora em uma análise para que se possa superar isso passa, entre muitas outras coisas, pelo questionamento disso a que o sujeito se prende de forma tão intensa, mesmo com muito sofrimento. Mudar é, então, saber-se capaz de perder o que nunca se teve. Parece simples. Mas só parece.